segunda-feira, 12 de dezembro de 2022

Logosofia #4: Não comprometa o ser de amanhã com situações impensadas

Ergasto: — Não consigo compreender por que acontecem certas alterações no curso de nossa vida. Quando tudo parece andar sobre os trilhos, subitamente, sem havermos suspeitado ou sequer pressentido a mais remota mudança de situação, problemas graves ou dificuldades extremas nos sobrevêm, precipitando-nos em amargos transes.

Preceptor: — À sua indagação cabe responder da seguinte forma: o ser é uma sucessão de seres. Por conseguinte, de cada um depende que o ser de hoje não comprometa o de amanhã, criando-lhe problemas ou obrigando-o a enfrentar as situações que o primeiro não teve a valentia de enfrentar. Aquele que empenha com certa leviandade sua palavra ou seus bens, aquele que assina compromissos de cujos vencimentos o ser de amanhã deverá se responsabilizar, não criou para este os graves problemas ou dificuldades extremas a que você aludiu? Ocorre, geralmente, que se pensa egoisticamente no ser de hoje sem sequer se lembrar do de amanhã. Não obstante, há aqueles que, realizando dignos esforços, pensam neste último, para que esse ser de amanhã — que será ele mesmo — possa desfrutar uma situação folgada e feliz. Com eles não acontecem essas alterações de que você falou, porque são previdentes e não se atêm egoisticamente ao ser de hoje. Tudo isso ensina que, se em determinado momento se desfruta a felicidade, ela deve ser equitativamente repartida entre os seres que irão sucedendo ao de hoje, a fim de que haja continuidade e não contraste, evitando, ao mesmo tempo, que o sofrimento deste último alcance o ser de amanhã.

Ergasto: — Suponho que essa não será a única causa, já que, se não me falha a memória, em certa oportunidade o senhor me disse que são os nossos erros que nos trazem depois os desgostos e dissabores mais desagradáveis. 

Preceptor: — Se lhe aponto neste momento uma só causa, é porque eu a conceituava suficiente para sua compreensão. Além disso, ao lhe responder, levei em conta seu caso particular. 

Ergasto: — Perfeitamente. Gostaria ainda de expor ao senhor algo mais, por me ser muito necessária sua elucidação. É o seguinte: não faz muito, ante um acontecimento lutuoso, desses que com frequência se repetem em todos os lares ao desaparecer um de seus membros, eu me perguntei, diante do quadro dilacerador que estava presenciando, se não haveria algo, superior a nossos sentimentos, que, atuando em nós, atenuasse, ainda que em parte, a intensidade dessa dor. Porém, não pude encontrar nenhum raciocínio que valesse, capaz de moderar a intensidade de um golpe psicológico dessa índole. 

Preceptor: — Quando ocorre uma situação como a que você expôs, eu já disse outras vezes, os seres sofrem esses bruscos estremecimentos de angustiante desconsolo, por se tratar, precisamente, de acontecimentos sobre os quais nunca ou muito raramente pensam, para não serem invadidos por pressentimentos que depois afligem ou deprimem o ânimo. Isso se deve à ausência de uma concepção mais ampla dos transes humanos que é necessário afrontar no curso da vida. Uma mente iluminada pela ação fecunda do conhecimento transcendente sabe muito bem que o inesperado pode acontecer a qualquer momento, e, atendo-se a essa realidade, leva sua convicção ainda mais longe que toda esperança ou fato concebível, preparando o espírito para qualquer eventualidade, pressentida ou não, que possa sobrevir. Assim reconfortado, poderá nosso ânimo suportar com mais serenidade e inteireza o que, no caso de acontecer, nós mesmos já tínhamos concebido como algo irremediável.

Fonte: Livro Diálogos. Comportamentos que comprometem o ser de amanhã - Os acontecimentos inesperados.

(Anderson Kaspechacki)