quinta-feira, 21 de abril de 2022

Leitura #23: A miséria da condição humana - Desembargador Torres Marques

Embora eu não consiga precisar se a autoria do texto abaixo seja realmente da lavra do Sr. Desembargador Torres Marques em seu discurso de posse, fato é que difere de qualquer outro lido por mim e, pela profundidade do conteúdo, o considero de leitura obrigatória.


"Excelentíssimo Senhor Desembargador Torres Marques:


Na pessoa de Vossa Excelência, por brevidade, cumprimento a todas as autoridades que compõem a mesa, ao colegiado pleno deste Tribunal e ao público presente.


Peço escusas por não usar meu tempo fazendo um discurso sobre a importância e a honra de ser alçado ao cargo de desembargador, porque isso é evidente por si só, como demonstra a cerimônia e dispensa louvações.
 

Ao invés disso, prefiro utilizar do privilégio de estar na tribuna para abordar este momento sob um prisma diferente. 

Todos nós aqui, que integramos esse colegiado, representamos a memória viva das experiências que, ao longo de décadas, testemunhamos nos nossos gabinetes, nas salas de audiências e corredores dos fóruns: o desfile interminável da grandeza e da miséria da condição humana, especialmente da miséria. Toda essa memória não tem paralelo em nenhum outro âmbito da administração pública. Nós, os homens e as mulheres da justiça, somos os depositários dessa vivência única. Essas experiências, acabam por força, a nos fazer refletir sobre a fragilidade de nossa própria condição, e quando acontece de alguma delas nos tocar em especial, isso funciona como uma epifania, ou uma revelação. Lamentavelmente, não costumamos registrá-las e elas tendem a desaparecer conosco, o que é uma pena, pois o seu valor é atemporal e transcendente.


Eu tenho uma história dessas e gostaria de compartilhá-la.


Eu assumi a magistratura em janeiro de 1.990 e pouco depois fui lotado numa comarca do nosso litoral. Lá, deparei com uma pilha de processos sobre uma cadeira, todos aguardando sentença. Escolhi um deles, ao acaso. Tratava-se de uma ação ajuizada fazia exatamente dez anos! Dez anos! Um operário havia sofrido uma marretada acidental no trabalho e isso havia deformado a sua mão direita. Havia uma fotografia dessa mão deformada no processo e uma cópia da carteira do trabalho do operário, com a sua fotografia. O acidente ocorreu em 1978 e o INSS não reconhecera sua invalidez. O homem pretendia que o juiz declarasse o seu direito à aposentadoria, pois o trauma havia lhe provocado uma psicose que o tornado incapaz de trabalhar.

Esse processo ficou sendo jogado de um escaninho ao outro do cartório, sem nenhuma solução. Um simples despacho demandava meses. Permaneceu na fase de perícia por 03 anos. Depois ficou 02 anos no gabinete do promotor de justiça, mais de 01 ano com o advogado do autor e, finalmente, estava aguardando sentença há mais de 02 anos. Ao todo haviam se passado 10 anos.

Não havia nada naquela comarca que justificasse aquele estado de coisas e essa era a grande questão.

Coube, então, a mim, por acaso, prolatar a sentença, na qual reconheci a existência do direito que o cidadão reclamava.

Como eu era juiz substituto, fui removido para uma comarca próxima dali e uns seis meses depois, presidi uma audiência na área de família. De um lado da mesa sentou-se uma senhora e do outro, um velho apoiado numa bengala, surdo, alheio ao que se passava e acompanhado da filha, que me explicou que estava ali para ajudar o pai a entender o que ocorreria na audiência.

Quando aquele homem sentou e largou a bengala na ponta da mesa, a mão direita dele ficou bem próxima de mim, e eu imediatamente reconheci a mão deformada daquele operário, cujo processo eu havia julgado.

Então compreendi, naquele momento, que a minha sentença não fazia nenhum sentido e tinha até mesmo um gosto amargo de ultraje. Quando aquele homem precisou do Estado, o Estado lhe virou as costas. Quando ele precisou da sua aposentadoria para manter a sua unidade familiar e tratar de sua saúde, todos lhe viraram as costas. Agora, uma década depois, nada mais se podia fazer por ele, que não tinha sequer condições de manifestar sua indignação. Nós falhamos miseravelmente com aquele cidadão, essa é que é a verdade.

O que eu aprendi com aquela experiência chocante foi que nós, juízes, temos os mesmos defeitos e qualidades de nossos semelhantes, mas há um pecado em que não podemos incorrer, que é a indiferença com as nossas obrigações e responsabilidades. Um homem indiferente, de certa forma, é um homem armado, é um homem que pode fazer mas não faz, é um homem que não se dá conta do seu lugar no mundo e a ele se deve negar legitimidade para reclamar da falta de justiça. A indiferença nada mais é do que uma forma de degeneração moral. E nós não estamos aqui para ser indiferentes, mas para fazer a diferença.

Por isso, é importante fazer uma última referência. Todos nós aqui fizemos o mesmo juramento, de servir fiel e honradamente à Lei e à Justiça. Esse é o nosso mantra. A nós, portanto, cabe dar o exemplo, em primeiro lugar, porque o nosso compromisso com a justiça envolve nosso comprometimento com os valores acolhidos pelo Estado Democrático de Direito. Mas como podemos cumprir esse juramento, se, no momento em que se aproximam as eleições para os cargos diretivos de nosso tribunal, começarmos a desrespeitar a soberania dos atos que são aprovados por unanimidade por este colegiado, colocando-nos à frente do avanço na ampliação das garantias democráticas que todos, sem exceção, referendaram?

Existe um limite para tudo e ainda há tempo para refletir e preservar a dignidade desta Casa de um grande constrangimento. Eu faço um apelo nesse sentido. Toda a magistratura está olhando para nós. Não vamos atravessar essa linha. Vamos nos lembrar do que diziam os romanos, pais do nosso direito: quaisquer que sejam as batalhas que travemos na vida, é preferível guardar a honra na derrota do que se envergonhar da vitória.

Viva a Justiça e viva a Democracia".

 

(Anderson Kaspechacki)