Ergasto: — Não consigo compreender por que acontecem
certas alterações no curso de nossa vida. Quando
tudo parece andar sobre os trilhos, subitamente, sem
havermos suspeitado ou sequer pressentido a mais
remota mudança de situação, problemas graves ou
dificuldades extremas nos sobrevêm, precipitando-nos em amargos transes.
Preceptor: — À sua indagação cabe responder da seguinte forma:
o ser é uma sucessão de seres. Por conseguinte, de
cada um depende que o ser de hoje não comprometa
o de amanhã, criando-lhe problemas ou obrigando-o a
enfrentar as situações que o primeiro não teve a valentia de enfrentar. Aquele que empenha com certa
leviandade sua palavra ou seus bens, aquele que assina
compromissos de cujos vencimentos o ser de amanhã
deverá se responsabilizar, não criou para este os graves
problemas ou dificuldades extremas a que você aludiu? Ocorre, geralmente, que se pensa egoisticamente
no ser de hoje sem sequer se lembrar do de amanhã.
Não obstante, há aqueles que, realizando dignos esforços, pensam neste último, para que esse ser de amanhã
— que será ele mesmo — possa desfrutar uma situação
folgada e feliz. Com eles não acontecem essas alterações de que você falou, porque são previdentes e não
se atêm egoisticamente ao ser de hoje. Tudo isso ensina que, se em determinado momento
se desfruta a felicidade, ela deve ser equitativamente
repartida entre os seres que irão sucedendo ao de
hoje, a fim de que haja continuidade e não contraste,
evitando, ao mesmo tempo, que o sofrimento deste
último alcance o ser de amanhã.
Ergasto: — Suponho que essa não será a única causa, já
que, se não me falha a memória, em certa oportunidade o senhor me disse que são os nossos erros
que nos trazem depois os desgostos e dissabores
mais desagradáveis.
Preceptor: — Se lhe aponto neste momento uma só causa, é porque eu a conceituava suficiente para sua compreensão. Além disso, ao lhe responder, levei em conta seu
caso particular.
Ergasto: — Perfeitamente. Gostaria ainda de expor ao senhor
algo mais, por me ser muito necessária sua elucidação. É o seguinte: não faz muito, ante um acontecimento lutuoso, desses que com frequência se repetem
em todos os lares ao desaparecer um de seus membros, eu me perguntei, diante do quadro dilacerador
que estava presenciando, se não haveria algo,
superior a nossos sentimentos, que, atuando em
nós, atenuasse, ainda que em parte, a intensidade
dessa dor. Porém, não pude encontrar nenhum raciocínio que valesse, capaz de moderar a intensidade de
um golpe psicológico dessa índole.
Preceptor: — Quando ocorre uma situação como a que você
expôs, eu já disse outras vezes, os seres sofrem
esses bruscos estremecimentos de angustiante desconsolo, por se tratar, precisamente, de acontecimentos sobre os quais nunca ou muito raramente
pensam, para não serem invadidos por pressentimentos que depois afligem ou deprimem o ânimo.
Isso se deve à ausência de uma concepção mais
ampla dos transes humanos que é necessário afrontar no curso da vida. Uma mente iluminada pela ação fecunda do conhecimento transcendente sabe
muito bem que o inesperado pode acontecer a
qualquer momento, e, atendo-se a essa realidade,
leva sua convicção ainda mais longe que toda
esperança ou fato concebível, preparando o espírito para qualquer eventualidade, pressentida ou
não, que possa sobrevir. Assim reconfortado, poderá
nosso ânimo suportar com mais serenidade e inteireza o que, no caso de acontecer, nós mesmos já
tínhamos concebido como algo irremediável.
Fonte: Livro Diálogos. Comportamentos que comprometem o ser de amanhã - Os acontecimentos inesperados.
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(Anderson Kaspechacki)
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